quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais


Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentaisTexto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4666


George Marmelstein Lima
juiz federal substituto no Ceará



SUMÁRIO: 1. Um despretensioso discurso; 2. As Críticas; 2.1. Uma geração não substitui a outra; 2.2. Ausência de verdade histórica; 2.3. Perigosa e falsa dicotomia; 2.4. A indivisibilidade dos direitos fundamentais; 3. Pode-se falar em dimensões dos direitos fundamentais? 4. Conclusão. Bibliografia.

            PALAVRAS-CHAVES: Direitos Fundamentais – Direitos Humanos – Gerações dos Direitos Fundamentais – Direitos Civis, Políticos, Sociais, Econômicos, Culturais, Ambientais – Liberdade – Igualdade – Fraternidade – Direitos a Prestações – Direitos Negativos – Estado Liberal – Estado Social.


1. Um despretensioso discurso

             No ano de 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, o jurista Karel VASAK utilizou, pela primeira vez, a expressão "gerações de direitos do homem", buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).
            De acordo com o referido jurista, a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté). A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité). Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité) (1).
            O professor e Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado TRINDADE, durante uma palestra que proferiu em Brasília, em 25 de maio de 2000, comentou que perguntou pessoalmente para Karel VASAK por que ele teria desenvolvido aquela teoria. A resposta do jurista tcheco foi bastante curiosa: "Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu de fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa".
            Portanto, segundo Cançado TRINDADE, nem o próprio VASAK levou muito a sério a sua tese (2).
            Mesmo assim, esse despretensioso discurso logo ganhou fama. Os juristas passaram a repeti-lo e até desenvolvê-lo, como, por exemplo, Noberto BOBBIO, que foi um dos principais responsáveis pela sua divulgação (3). Aliás, muitos pensam erroneamente que a doutrina das gerações dos direitos fundamentais é de sua autoria.
            Novas gerações foram acrescidas à tríade inicial (4), destacando-se a quarta, desenvolvida pelo Professor Paulo BONAVIDES.
            Para o grande constitucionalista brasileiro, o direito à democracia (direta), o direito à informação e o direito ao pluralismo comporiam a quarta geração dos direitos fundamentais, "compendiando o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos" e, somente assim, tornando legítima e possível a tão temerária globalização política (5).
            Em síntese, o quadro das "gerações dos direitos fundamentais" ficou desenhado do seguinte modo:
            1a Geração

            2a Geração

            3a Geração

            4a Geração
            Liberdade
            Igualdade
            Fraternidade
            Democracia (direta)
            Direitos negativos (não agir)
            Direitos a prestações
            Direitos civis e políticos: liberdade política, de expressão, religiosa, comercial
            Direitos sociais, econômicos e culturais
            Direito ao desenvolvimento, ao meio-ambiente sadio, direito à paz
            Direito à informação, à democracia direta e ao pluralismo
            Direitos individuais
            Direitos de uma coletividade
            Direitos de toda a Humanidade
            Estado Liberal
            Estado social e Estado democrático e social
            Conforme se demonstrará, apesar da fama que alcançou, a teoria das gerações dos direitos fundamentais não se sustenta diante de uma análise mais crítica, nem é útil do ponto de vista dogmático. Possui, contudo, um inegável valor didático, já que facilita o estudo dos direitos fundamentais, e simbólico, pois induz à idéia de historicidade desses direitos. Além disso, o modelo baseado nas gerações fornece o alicerce para a construção de uma nova teoria das dimensões dos direitos fundamentais, esta sim importante e útil.
            Neste trabalho, busca-se tanto demonstrar o equívoco da teoria das gerações quanto fornecer subsídios para a construção de uma nova teoria das dimensões dos direitos fundamentais.


2. As Críticas
            2.1. Uma geração não substitui a outra

            A expressão "geração de direitos" tem sofrido várias críticas da doutrina nacional e estrangeira. É que o uso do termo "geração" pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, o que é um erro, já que, por exemplo, os direitos de liberdade não desaparecem ou não deveriam desaparecer quando surgem os direitos sociais e assim por diante. O processo é de acumulação e não de sucessão.
            Além disso, a expressão pode induzir à idéia de que o reconhecimento de uma nova geração somente pode ou deve ocorrer quando a geração anterior já estiver madura o suficiente, dificultando bastante o reconhecimento de novos direitos, sobretudo nos países ditos periféricos (em desenvolvimento), onde sequer se conseguiu um nível minimamente satisfatório de maturidade dos direitos da chamada "primeira geração".
            Por causa disso, a teoria contribui para a atribuição de baixa carga de normatividade e, conseqüentemente, de efetividade dos direitos sociais e econômicos, tidos como direitos de segunda geração e, portanto, sem prioridade de implementação.
            Até em países desenvolvidos, como nos Estados Unidos, ainda não se aceita pacificamente a idéia de que os direitos sociais são verdadeiros direitos fundamentais, apesar de inúmeras Constituições de Estados-membros consagrarem em seus textos direitos dessa espécie.
            Naquele país, a própria Suprema Corte norte-americana, na chamada "Era Lochner" (primeiras décadas do século XX), declarou a inconstitucionalidade de diversas leis federais, editadas período do New Deal, que concediam aos trabalhadores direitos sociais mínimos, como a limitação da jornada de trabalho e pisos salariais. As decisões baseavam-se justamente na idéia de que a "livre iniciativa" ou a "liberdade contratual" era um direito assegurado constitucionalmente, e que o legislador não poderia interferir nessa liberdade, sob pena de violar o "due process of law", em seu sentido material (6). Fica subentendido, nessas decisões, que os direitos de primeira geração (liberdade) são mais importantes do que os direitos de segunda geração (igualdade), como se houvesse uma nítida hierarquia entre esses direitos. Interessante notar também que, nesse período, o ativismo judicial foi bastante intenso, sendo constantemente invocada a cláusula do "substancial due process" para impedir o surgimento de direitos sociais, o que demonstra que nem sempre o ativismo judicial é próprio de juízes "revolucionários"...
            Como se sabe, essa postura conservadora da Suprema Corte norte-americana foi sendo modificada aos poucos, sobretudo em razão de forte pressão política exercida pelo Presidente Roosevelt. No entanto, até hoje aquele país considera os direitos sociais como direitos de "segunda categoria". Não é à toa que os Estados Unidos têm-se negado, sistematicamente, a ratificar tratados internacionais de proteção de direitos da segunda e terceira gerações. A esse respeito, informa Fábio Konder COMPARATO que o último tratado internacional de direitos humanos integralmente ratificado pelos Estados Unidos foi o Pacto aprovado pelas Nações Unidas em 1966, sobre direitos civis e políticos. O pacto do mesmo ano sobre direitos econômicos, sociais e culturais foi rejeitado pelo Congresso norte-americano, bem como diversos tratados posteriores, inclusive de cunho ambiental, como o Protocolo de Kioto (1998), que prevê metas para a redução de emissão de gases para a atmosfera. Com isso, os Estados Unidos se tornam, no plano internacional, um Estado fora da lei (7).

            2.2. Ausência de verdade histórica

            Além do equívoco acima exposto, que torna até perigosa a teoria das gerações dos direitos fundamentais, já que dificulta a positivação e a efetivação dos direitos sociais e econômicos, bem como dos direitos de solidariedade mundial, a teoria também não retrata a verdade histórica.
            A evolução dos direitos fundamentais não segue a linha descrita (liberdade → igualdade → fraternidade) em todas as situações. Nem sempre vieram os direitos da primeira geração para, somente depois, serem reconhecidos os direitos da segunda geração.
            O Brasil é um exemplo claro dessa constatação histórica. Aqui, vários direitos sociais foram implementados antes da efetivação dos direitos civis e políticos. Na "Era Vargas", durante o Estado Novo (1937-1945), foram reconhecidos, por lei, inúmeros direitos sociais, especialmente os trabalhistas e os previdenciários, sem que os direitos de liberdade (de imprensa, de reunião, de associação etc) ou políticos (de voto, de filiação partidária) fossem assegurados, já que se vivia sob um regime de exceção democrática e a liberdade não saía do papel.
            Outro exemplo mais atual dessa falsa idéia de que os direitos de liberdade antecedem historicamente os direitos de igualdade ocorre na China e em Cuba. Nesses países, onde vigora um regime comunista autoritário, não há proteção aos direitos de liberdade, mas vários direitos de igualdade são proclamados pelo Estado.
            Além disso, no plano internacional, os direitos trabalhistas (sociais) surgiram primeiro do que os direitos de liberdade, bastando lembrar que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada logo após a I Guerra Mundial para uniformizar, em nível global, as garantias sociais dos trabalhadores, surgiu antes da Organização das Nações Unidas (ONU). Desse modo, vários tratados reconhecendo direitos sociais foram editados no começo do século XX (1920/1930), ao passo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem somente foi editada em 1948.
            Por fim, outra afirmação que historicamente não traduz totalmente a verdade é a de que a postura do Estado Liberal sempre foi uma postura meramente passiva. Essa é apenas uma meia verdade, pois, no campo da repressão, o Estado liberal foi bastante ativo, extrapolando, muitas vezes, a proclamada condição de espectador, colocando-se ao lado dos detentores do capital na repressão aos trabalhadores. Era comum o apoio das forças policiais para proteger as fábricas, perseguir e prender lideranças operárias, apreender jornais, destruir gráficas (8), demonstrado que o discurso liberal era de mão única, protegendo apenas os interesses da burguesia. Quando a liberdade (no caso, a liberdade de reunião, de associação e de expressão) representava uma ameaça ao status quo, o Estado deixava de lado a doutrina do laissez-faire, passando a agir, intensamente, em nome dos interesses da burguesia. Qualquer semelhança com o Estado "neoliberal" não é mera coincidência.

            2.3. Perigosa e falsa dicotomia

            Outro equívoco grave da teoria é considerar que os direitos de primeira geração são direitos negativos, não onerosos, enquanto os direitos de segunda geração são direitos a prestações. Essa visão, certamente influenciada pela classificação dos direitos por status, desenvolvida por Jellinek, considera, em síntese, que os direitos civis e políticos (direitos de liberdade) teriam o status negativo, pois implicariam em um não agir (omissão) por parte do Estado; os direitos sociais e econômicos (direitos de igualdade), por sua vez, teriam um statuspositivo, já que a sua implementação necessitaria de um agir (ação) por parte do Estado, mediante o gasto de verbas públicas (9).
            Essa falsa distinção, repetida sem muito questionamento por quase todos os juristas, é a responsável pela principal crítica que pode ser feita à teoria das gerações dos direitos fundamentais, já que enfraquece bastante a normatividade dos direitos sociais, retirando do Poder Judiciário a oportunidade de efetivar esses direitos.
            É um grande erro pensar que os direitos de liberdade são, em todos os casos, direitos negativos, e que os direitos sociais e econômicos sempre exigem gastos públicos. Na verdade, todos os direitos fundamentais possuem uma enorme afinidade estrutural. Concretizar qualquer direito fundamental somente é possível mediante a adoção de um espectro amplo de obrigações públicas e privadas, que se interagem e se complementam, e não apenas com um mero agir ou não agir por parte do Estado.
            Com exemplos, será melhor visualizado o equívoco dessa dicotomia.
            O direito de propriedade é um direito civil por excelência. Seria um direito de primeira geração e, portanto, de status negativo.
            Sem dúvida, uma das garantias decorrentes do direito de propriedade compreende a proibição de violação da propriedade pelo Estado, salvo mediante regular processo expropriatório, com prévia e justa indenização, o que denota uma característica negativa desse direito (o Estadonão pode confiscar a propriedade particular). No entanto, a sua plena proteção exige também inúmeras obrigações positivas: promoção de um adequado aparato policial para proteger a propriedade privada (segurança pública), edição de normas para garantir o exercício do direito, estabelecimento de medidas normativas e processuais adequadas para garantir a reparação do dano no caso de violação do direito de propriedade etc. Ou seja, não basta o Estado ficar inerte, sem gastar nada, para garantir o direito de propriedade. Pelo contrário, a proteção da propriedade exige o dispêndio de grande soma de dinheiro, sob pena de tornar a propriedade alvo fácil de criminosos. Apenas para ilustrar esse aspecto oneroso de um direito dito de primeira geração, basta dizer que os Estados Unidos gastam, com segurança pública, várias vezes o valor que é gasto com a saúde, sobretudo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 (10).
            Já que se falou em saúde, vale fazer a mesma análise. A proteção do direito à saúde, que é um direito social, e, portanto, de segunda geração, teria, na classificação tradicional, statuspositivo. No entanto, esse direito não é garantido exclusivamente com obrigações de cunho prestacional, em que o Estado necessita agir e gastar verbas para satisfazê-lo. O direito à saúde possui também facetas negativas como, por exemplo, impedir o Estado de editar normas que possam prejudicar a saúde da população ou mesmo evitar a violação direta da integridade física de um cidadão pelo Estado (o Estado não pode agir contra a saúde dos cidadãos). Além disso, nem todas as obrigações positivas decorrentes do direito à saúde implicam gastos para o erário. Por exemplo, a edição de normas de segurança e saúde no ambiente de trabalho não implica qualquer gasto público, pois quem deve implementar tais medidas são, em princípio, as empresas privadas(11).
            Veja-se que há vários outros direitos sociais (de greve e de sindicalização, por exemplo) cuja nota mais marcante é precisamente um não-agir estatal. Igualmente, há vários direitos ditos de primeira geração (direito de petição e de ação, direito ao devido processo, direito dos presos a um tratamento digno etc) cujo cumprimento somente ocorrerá através da adoção de medidas positivas (agir) por parte do Estado.
            Uma simples análise do orçamento estatal no Brasil comprova que os direitos ditos de primeira geração exigem tantos gastos públicos quanto os direitos ditos de segunda geração. Basta ver o que se gasta com o Poder Judiciário, com as polícias e corpos de bombeiros, com os presídios, com as agências reguladoras (ANATEL, ANP etc), com o processo eleitoral, com os conselhos de proteção da concorrência (p.ex. CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica) etc. para perceber que os chamados direitos civis e políticos também são bastante onerosos, e nem por isso é negada a possibilidade de interferência judicial para proteger esses direitos. Veja-se que aqui nem se mencionou o chamado ônus indireto, decorrente de renúncias fiscais que o Estado pratica para proteger alguns direitos de liberdade, como por exemplo, as imunidades tributárias dos templos de qualquer culto (art. 150, inc. VI, b, da CF/88) e dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (art. 150, inc. VI, d, da CF/88), destinadas a assegurar, respectivamente, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Também não se mencionou o dinheiro que os particulares gastam para poderem exercitar esses direitos (segurança particular, seguros, conselhos de regulação profissional, taxas judiciárias, campanhas eleitorais milionárias etc).
            Por isso, é fundamental que se afaste essa equivocada dicotomia de que os direitos de liberdade são direitos negativos, não onerosos, e que os direitos sociais são direitos a prestações, onerosos. Essa falsa divisão afeta diretamente a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais, contribuindo para reforçar a odiosa tese de que os direitos sociais são meras normas programáticas, cuja aplicação ficaria a depender da boa vontade do legislador e do administrador público, não podendo a concretização desses direitos ser exigida judicialmente.
            Na verdade, somente pelo contexto histórico há sentido em distinguir os direitos civis e políticos dos direitos sociais, econômicos e culturais. Do ponto de vista estrutural e funcional, todos esses direitos se equivalem e se completam, numa relação de interdependência.

            2.4. A indivisibilidade dos direitos fundamentais

            Como se observa, todas as categorias de direitos fundamentais, sejam os direitos civis e políticos, sejam os direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais, exigem obrigações negativas ou positivas por parte do Estado. Os direitos civis e políticos não são realizados apenas mediante obrigações negativas, assim como os direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais não são realizados apenas com obrigações positivas.
            Percebe-se, com isso, uma interessante afinidade estrutural entre todos os direitos fundamentais, reforçando a idéia de indivisibilidade, conforme já reconhecido pela ONU desde 1948. Note-se, por exemplo, como é difícil desvincular o direito à vida (1ª geração) do direito à saúde (2ª geração), a liberdade de expressão (1ª geração) do direito à educação (2º geração), o direito de voto (1ª geração) do direito à informação (4ª geração), o direito de reunião (1ª geração) do direito de sindicalização (2ª geração), o direito à propriedade (1ª geração) do direito ao meio ambiente sadio (3ª geração) e assim por diante.
            É de suma importância tratar os direitos fundamentais como valores indivisíveis, a fim de não se priorizarem os direitos de liberdade em detrimento dos direitos sociais ou vice-versa. Na verdade, de nada adianta a liberdade sem que sejam concedidas as condições materiais e espirituais mínimas para fruição desse direito. Não é possível, portanto, falar em liberdade sem um mínimo de igualdade, nem de igualdade sem as liberdades básicas. Como afirma Sérgio MORO, "é até valioso relacionar os direitos sociais às liberdades para que, desde logo, fique claro que não se trata de optar entre aqueles e estas. Não se querem direitos sociais sem liberdade, assim como esta não é possível, para todos, sem aqueles. Em ambos esses casos, ficaria comprometida a democracia e o princípio da dignidade da pessoa humana" (12).
            Essa indivisibilidade dos direitos fundamentais exige que seja superada essa idéia estanque de divisão dos direitos através de gerações. E mais: exige que seja abominada a idéia de que os direitos sociais são direitos de segunda categoria, como se houvesse hierarquia entre as diversas gerações de direitos fundamentais, e que a violação de um direito social não fosse tão grave quanto a violação de um direito civil ou político.


3. Pode-se falar em dimensões de Direitos Fundamentais (13)?

            Em razão de todas essas críticas, a doutrina recente tem preferido o termo "dimensões" no lugar de "gerações" (14), afastando a equivocada idéia de sucessão, em que uma geração substitui a outra.
            No entanto, a doutrina continua incorrendo no erro de querer classificar determinados direitos como se eles fizessem parte de uma dada dimensão, sem atentar para o aspecto da indivisibilidade dos direitos fundamentais. Na verdade, não é adequado nem útil dizer, por exemplo, que o direito de propriedade faz parte da primeira dimensão. Também não é correto nem útil dizer que o direito à moradia é um direito de segunda dimensão.
            O ideal é considerar que todos os direitos fundamentais podem ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões, ou seja, na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão), na dimensão de solidariedade (terceira dimensão) e na dimensão democrática (quarta dimensão). Não há qualquer hierarquia entre essas dimensões. Na verdade, elas fazem parte de uma mesma realidade dinâmica. Essa é a única forma de salvar a teoria das dimensões dos direitos fundamentais.
            Veja-se, a título de exemplo, o direito à propriedade: na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), a propriedade tem seu sentido tradicional, de natureza essencialmente privada, tal como protegida no Código Civil; já na sua acepção social (segunda dimensão), esse mesmo direito passa a ter uma conotação menos individualista, de modo que a noção de propriedade fica associada à idéia de função social (art. 5º, inc. XXIII, da CF/88); por fim, com a terceira dimensão, a propriedade não apenas deverá cumprir uma função social, mas também uma função ambiental (15).
            A mesma análise pode ser feita com os direitos sociais, como por exemplo, o direito à saúde. Em um primeiro momento, a saúde tem uma conotação essencialmente individualista: o papel do Estado será proteger a vida do indivíduo contra as adversidades existentes (epidemias, ataques externos etc) ou simplesmente não violar a integridade física dos indivíduos (vedação de tortura e de violência física, por exemplo), devendo reparar o dano no caso de violação desse direito (responsabilidade civil). Na segunda dimensão, passa a saúde a ter uma conotação social: cumpre ao Estado, na busca da igualização social, prestar os serviços de saúde pública, construir hospitais, fornecer medicamentos, em especial para as pessoas carentes. Em seguida, numa terceira dimensão, a saúde alcança um alto teor de humanismo e solidariedade, em que os (Estados) mais ricos devem ajudar os (Estados) mais pobres a melhorar a qualidade de vida de toda população mundial, a ponto de se permitir, por exemplo, que países mais pobres, para proteger a saúde de seu povo, quebrem a patente de medicamentos no intuito de baratear os custos de um determinado tratamento, conforme reconheceu a própria Organização Mundial do Comércio, apreciando um pedido feito pelo Brasil no campo da AIDS (16). E se formos mais além, ainda conseguimos dimensionar a saúde na sua quarta dimensão (democracia), exigindo a participação de todos na gestão do sistema único de saúde, conforme determina a Constituição Federal de 1988 (art. 198, inc. III).
            O direito ao meio ambiente também pode ser visualizado em múltiplas dimensões. Em uma dimensão negativa, o Estado fica, por exemplo, proibido de poluir as reservas ambientais. Por sua vez, não basta uma postura inerte, pois o Estado também deve montar um aparato de fiscalização capaz de impedir que os particulares promovam a destruição do ambiente, a fim de preservar os recursos naturais para as gerações futuras. Além disso, já caminhando em uma quarta dimensão, o Estado deve proporcionar a ampla informação acerca das políticas ambientais (educação ambiental – art. 225, §1º, inc. VI, da CF/88), permitindo, de modo direto, a participação dos cidadãos na tomada de decisões nessa matéria, democratizando o processo político, através da chamada cidadania sócio-ambiental.
            Os exemplos se seguem em todos os direitos fundamentais, inclusive os de cunho instrumental (direitos processuais). O direito de ação, por exemplo. Na visão tradicional, a ação tem aquele cunho individualista, representando a mera faculdade de acionar o Poder Judiciário. Com a segunda dimensão, o processo deixa de ser mero instrumento de proteção de direitos subjetivos, passando a ter uma conotação mais social, abrangendo as lides coletivas e exigindo do Estado uma postura mais ativa no sentido de facilitar o acesso à Justiça, sobretudo para as camadas mais pobres da população. Ganha também o processo uma conotação democrática (quarta dimensão), devendo ser abertos os canais de participação popular no debate judicial, a fim de pluralizar a discussão, garantindo, assim, uma maior efetividade e legitimidade à decisão, que será enriquecida pelos elementos e pelo acervo de experiências que os participantes do processo poderão fornecer (17). Essa democratização da atividade jurisdicional deve afetar, inclusive, a própria administração da Justiça, tornando, por exemplo, o processo de escolha dos membros do Judiciário mais transparente e legítimo.
            Como se observa, a teoria da dimensão dos direitos fundamentais, vista com essa nova roupagem, possui implicações práticas relevantes, já que obriga que se faça uma abordagem de um dado direito fundamental, mesmo aqueles ditos de primeira dimensão, através de uma visão sempre evoluída, acompanhando o desenvolvimento histórico desses direitos (18).
            Além disso, essa nova visão baseada na multidimensionalidade dos direitos fundamentais permite a superação da classificação dos direitos por status, desenvolvida por Jellinek, que é uma das responsáveis pelo entendimento de que os direitos sociais não seriam verdadeiros direitos, mas simples declarações de boas intenções destituídas de exigibilidade.


3. Conclusão

            No presente trabalho, foi demonstrado que a teoria das gerações dos direitos fundamentais não é correta. As críticas desenvolvidas não tiveram, logicamente, a pretensão de desmerecer por completo a teoria. Pelo contrário. Pretendeu-se, apenas, apresentar alguns equívocos e perigos que ela pode acarretar para a concretização dos direitos considerados de gerações subseqüentes.
            Não se nega a sua importância didática e simbólica. É fundamental que se busque sempre o reconhecimento de novos direitos, bem como que se tenha a consciência de que os direitos fundamentais não são valores imutáveis. Nesse ponto, a teoria facilita a compreensão do processo evolutivo dos direitos fundamentais, embora essa evolução demonstrada pela teoria não se aplique a todas as situações históricas.
            Por último, é preciso reforçar a mudança de paradigma que deve ser feita. Não se deve procurar incluir tal ou qual direito em uma determinada geração (melhor dizendo: dimensão), como se as outras dimensões não afetassem o conteúdo desse direito. Todos os direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais etc) devem ser analisados em todas as dimensões, a saber: na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão), na dimensão de solidariedade e fraternidade (terceira dimensão) e na dimensão democrática (quarta dimensão). Cada uma dessas dimensões é capaz de fornecer uma nova forma de conceber um dado direito.
            A liberdade sem o mínimo de igualdade pouco vale. Do mesmo modo, de nada adianta a igualdade se não há garantia de liberdade. A luta pela efetivação dos direitos fundamentais deve englobar todos esses direitos e não apenas os de uma determinada "geração", como se essa efetivação devesse ocorrer de forma progressiva de uma geração para outra.
            Não se pode aceitar o discurso, tão em voga nesses tempos neoliberais, de que o papel do Estado é apenas garantir as liberdades básicas, cabendo à iniciativa privada a prestação dos direitos sociais e econômicos. Na verdade, se não houver uma intervenção estatal no sentido de promover a distribuição da riqueza, buscando a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF/88), através da concretização dos direitos sociais e econômicos, sobretudo para as pessoas mais carentes, a prometida "neo-liberdade" não passará de instrumento de escravização branca. Daí porque é cada vez mais importante quebrar essa dicotomia entre direitos de liberdade e direitos de igualdade, tratando todos os direitos fundamentais como valores indivisíveis e interdependentes.


NOTAS

            01. Cf. entre outros, PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 28.
            02. Palestra proferida durante o "Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional". Disponível on-line: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/Cancado_Bob.htm
            03. A propósito, v. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8a ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Interessante notar que até o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de reproduzir a teoria das gerações dos direitos fundamentais, conforme se observa no seguinte voto do Min. Celso de Mello: "enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade" (STF, MS 22164/SP).
            04. Já se fala em direitos de quarta, quinta, sexta e até sétima gerações, surgidas com a globalização, com os avanços tecnológicos (cibernética) e com as descobertas da genética (bioética). Cf. HOESCHL, Hugo César. O Conflito e os Direitos da Vida Digital. Disponível on-line (1º/11/2003): http://www.mct.gov.br/legis/Consultoria_Juridica/artigos/vida_digital.htm
            05. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 524/525.
            06. Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como Democracia. Tese de Doutorado, p. 15/17.
            07. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2003, p. 433, 532/533.
            08. DE LUCA, Tânia Regina. Direitos Sociais no Brasil, p. 472. In: História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, pp. 469/493.
            09. Logicamente, a teoria de Jellinek não é tão simples assim, até porque ele inclui outras categorias de status. No entanto, para os fins que ora se propõem, vale mencionar apenas essas duas categorias.
            10. Os gastos com segurança interna nos Estados Unidos passaram de US$ 18 bilhões para US$ 38 bilhões após os ataques terroristas, conforme noticiou a imprensa (fonte:http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20030910/pri_mun_100903_118.htm).
            11. No mesmo sentido, assim discorre Ingo SARLET: "o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como - e esta a dimensão mais problemática - impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde" (Algumas Considerações em Torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988, p. 98. In: Interesse Público n. 12, São Paulo: Nota Dez, 2001, pp. 91/107).
            12. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como Democracia. Tese de doutorado, p. 217.
            13. Fala-se em "dimensões" de direitos fundamentais em vários sentidos, por exemplo, dimensões subjetiva e objetiva, dimensões analítica, empírica e normativa, entre outras (v. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002). Neste trabalho, porém, o termo dimensão está sendo cogitado apenas para substituir o termo geração.
            14. Entre outros: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26; SARLET, Ingo Wolfgand. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 524/525.
            15. Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26.
            16. A notícia sobre a quebra de patentes de remédios para a AIDS foi amplamente divulgada nos meios de comunicação. Tratava-se, no caso, de um processo movido pelos Estados Unidos contra o Brasil, que havia permitido a licença compulsória de medicamentos com base na Lei de Propriedade Industrial brasileira e no Acordo Internacional sobre Propriedade Intelectual (TRIPS Agreement), firmado pelos países membros da OMC. Ao fim do processo, os EUA aceitaram que o Brasil produza medicamentos genéricos anti-Aids, desde que se comprometa a avisar antecipadamente a concessão de licenças compulsórias de patentes registradas por indústrias farmacêuticas norte-americanas.
            17. Nesse sentido, Peter HÄBERLE, na obra Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: uma contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição, defende que cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam valiosas forças produtivas da interpretação, cabendo aos juízes ampliar e aperfeiçoar os instrumentos de informação, especialmente no que se refere às formas gradativa de participação e à própria possibilidade de interpretação do processo constitucional (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 9/10).
            18. A respeito da natureza histórico-evolutiva dos direitos humanos, v. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.


BIBLIOGRAFIA

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            BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
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Mineiros do Chile e Soterrados do Brasil


Mineiros do Chile e Soterrados do Brasil
Jorge Luiz Souto Maior(*)



A notícia do resgate dos trabalhadores (mineiros) no Chile fez emergir na sociedade um sentimento que estava há muito tempo soterrado: a solidariedade.

É importante, de plano, deixar claro que a solidariedade é um sentimento mais profundo que a mera compaixão. A população em geral, mesmo fora dos limites territoriais do Chile, não apenas se condoeu com o sofrimento dos mineiros chilenos. Passou a se questionar como aquelas pessoas puderam ser submetidas a condições de trabalho tais que as expunham ao risco de tamanho sofrimento. As pessoas foram capazes de se colocar no lugar dos mineiros e esse é o atributo maior do sentimento de solidariedade, que nos impulsiona a análises mais sérias e a práticas concretas.

O próprio Presidente do Chile, Sebastien Piñera, disse, expressamente, que iniciaria uma revisão completa da legislação trabalhista chilena para o efeito de conferir maior segurança no trabalho “nas áreas de mineração, agricultura e indústria”. Oportuno lembrar, como destacado por Emir Sader[1] /a>, que fora o próprio irmão do Presidente, José Piñera, que, no Chile, deu continuidade à idéia de “flexibilização laboral”, vinda desde Pinochet, a qual deixou muitos trabalhadores, e em especial os mineiros, sem qualquer proteção efetiva do Estado.

O evento em questão, portanto, apresenta-se como uma oportunidade de se reconstituir a própria razão de ser da legislação trabalhista: o sentimento de solidariedade.

Foi, vale lembrar, a indignação diante do abandono a que são deixadas as pessoas que trabalham para a produção de riquezas, as quais aproveitam, direta ou indiretamente, a toda a sociedade, que motivou, na história recente da humanidade, a partir do final do século XIX, com intensificação nos períodos pós-guerras, o surgimento das leis trabalhistas e, conseqüentemente, do Direito do Trabalho.

A situação vivenciada pelos mineiros chilenos e a comoção social gerada nos permitem as seguintes indagações: alguém em sã consciência viria a público neste instante para defender que as péssimas condições de trabalho dos mineiros estariam justificadas em razão das exigências econômicas do mercado? Ou dizer que a redução das garantias trabalhistas dos mineiros era necessária para aliviar a empresa do custo que tais garantias correspondiam? Não, não diria, certamente...

Como demonstra a situação a que toda a sociedade acabou sendo obrigada a ver graças ao vulto midiático atingido, o custo deve fazer parte da própria essência do permissivo jurídico e social da exploração do trabalho alheio. Não é legítimo a ninguém pleitear a utilização do trabalho de outra pessoa dentro da lógica do menor custo. Há regras da própria convivência humana a serem respeitadas, cujo descumprimento representa uma agressão a toda a sociedade, causando indignação. Assim, os direitos trabalhistas jamais podem ser vistos como custos, que possam ser simplesmente extraídos. A preservação da dignidade e a elevação da condição humana dos trabalhadores são papéis fundamentais dos direitos trabalhistas, que não podem ser postos em questão por nenhum argumento econômico.

Um abalo sísmico, de natureza econômica, das bases fundamentais do Direito do Trabalho, poderia fazer com que se atraísse para a situação refletida no caso dos mineiros chilenos uma gama enorme de obstáculos à efetivação de direitos essenciais à preservação da condição humana. Diante da experiência extraída do cotidiano da Justiça do Trabalho no Brasil, fácil imaginar os tipos de argumentos que se utilizariam para negar aos mineiros chilenos algum direito. O dono da mina (se fosse identificado) diria: “eu não sou o empregador dos mineiros”; “não fui eu quem os contratou”; “não tendo contrato com os mineiros, não tenho responsabilidade legal quanto ao ocorrido, e ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo s enão em virtude de lei”. O sujeito que “contratou” os mineiros (se fosse localizado) diria: “eu não era empregador deles”; “eles eram meus colaboradores, prestadores de serviço autônomo”. No aspecto pertinente ao acidente propriamente dito, diriam, ambos: “não temos culpa pelo ocorrido, foi uma fatalidade”; “os mineiros cometeram ato inseguro, quando não seguiram as instruções de segurança”; “e, ademais, não houve concretamente um acidente do trabalho, pois não resultou qualquer lesão”; “do evento não resultou perda da capacidade laboral”; “os mineiros estão sãos e salvos e até devem ser gratos à empresa pois ganharam notoriedade internacional (eram meros desconhecidos, agora são personalidades)”; “sequer se pode dizer que houve sofrimento, muito pelo contrário, afinal, os mineiros se conheceram mais enquanto pessoas, aprendendo a explorar os seus limites de sobrevivência”...

Se acatados fossem tais argumentos, o sofrimento dos mineiros, que causou indignação internacional, seria transformado em pó, e este seria, na verdade, o momento mais trágico do evento em questão, que, provavelmente, não teria visibilidade midiática junto à comunidade internacional. O risco, portanto, é o de que a solidariedade se transforme em frívola compaixão, cuja manifestação sirva apenas a propósitos não revelados.

A sobrevivência é, por certo, o bem imediatamente mais importante, mas a sobrevida deve ser acompanhada do resgate da dignidade de cada um, sendo esta a dimensão necessária do direito. Mais do que presentes e festejos, os trabalhadores em questão precisam ver valer, em concreto, os seus direitos, que lhes pertencem não por um favor ou ato de benevolência, caridade ou compaixão de quem quer que seja. O efetivo resgate dos mineiros, portanto, ainda está por ser completado.

Cumpre verificar, ainda, que argumentos como os acima apresentados também tem sido utilizados, com freqüência, em lides trabalhistas que tratam de acidentes de trabalho no Brasil e, infelizmente, de forma não tão rara se vêem acatados, o que transforma a situação de milhões de trabalhadores brasileiros quase tão terrível quanto àquela que tiveram que suportar os mineiros chilenos. O fato é que, diariamente, no Brasil, direitos trabalhistas, cuja base existencial foi a solidariedade internacional, estão sendo soterrados a cada dia.

Assim, enquanto, no Chile, os mineiros eram reconduzidos à superfície, no Brasil incontáveis eram: os trabalhadores submersos em jornadas de trabalho de 12 horas ou mais; os “terceirizados” segregados no ambiente do trabalho, aos quais se recusam até o direito ao próprio nome; os trabalhadores no meio rural, e mesmo urbano, reduzidos à condição análoga à de escravos; as crianças e os adolescentes, até 16 anos de idade, explorados sob o pretexto de estarem sendo ajudados; os empregados submetidos a um sistema perverso de banco de horas, com alterações constantes de horários de trabalho, que lhes nega a mínima previsibilidade sobre a própria vida; empregados mascarados em PJs, cooperados ou “associados”, sem qualquer garantia trab alhista; as empregadas domésticas submetidas a trabalhar sem qualquer limitação da jornada de trabalho, sem proteção contra acidentes do trabalho, sem recebimento de salário mínimo, sem FGTS, amparo do seguro-desemprego etc; os motoristas de ônibus, caminhões ou carretas, expostos à necessidade de dirigirem dias e noites a fio, sob o risco de sofrerem graves acidentes; os estudantes utilizados como mão-de-obra barata, ou seja, sem as garantias trabalhistas integrais, sob a formalização de contratos com aparência legal como o de estágio e o de residência médica; os serventes e pedreiros trabalhando em vultosas obras sem a devida proteção jurídica trabalhista, mediante a suposição, fraudulentamente fixada, de serem empreiteiros; os trabalhadores em atividades insalubres sem as devidas proteções individuais, executando atividades com esforço repetitivo; trabalhadores sem o devido registro em Carteira; trabalhadores conduzidos às filas do desemprego sem o recebimento das denominadas “verbas rescisórias”, vendo-se obrigados, assim, a suportar os trâmites infindáveis de uma lide processual; os trabalhadores submetidos a revistas íntimas, invadidos em sua intimidade e privacidade, sob o argumento da preservação do patrimônio do empregador...

Ou seja, no mesmo momento em que a comunidade internacional comemorava o resgate formal dos mineiros chilenos, milhões de trabalhadores brasileiros continuavam soterrados na mais profunda injustiça, sem ser alvo sequer de alguma compaixão por parte dos demais membros de nossa sociedade, vez que a mídia não estava preocupada em difundir tal realidade. Não se pode deixar de consignar, por oportuno, que parte dessa mesma mídia durante muito tempo, bem ao contrário, tem se postado em estado de guerra contra os direitos dos trabalhadores, buscando abalar o “status” de cidadãos dessas pessoas.

E, ademais, como se está procurando dizer, mesmo uma compaixão não seria suficiente. Para alterar essa realidade, é preciso um efetivo exercício de solidariedade, que permita transportar para si as aflições, as angústias e os sofrimentos alheios, como forma de se atingir, com plenitude, a esfera da ordem jurídica. É neste sentido, como dito, que o caso dos mineiros chilenos não se resolve com o resgate de seus corpos e o mesmo efeito deve se produzir, com urgência, com relação a milhões de trabalhadores brasileiros, que merecem, até por dever jurídico, diante da incontestável vigência dos preceitos constitucionais, o empenho de nossa mais irrestrita e sincera solidariedade, que constitui o pressuposto necessário à eficácia de seus direitos. Afinal, diante de tragédias como a de lá e as de cá, a natureza essencial dos direitos trabalhistas ninguém há de negar!

(*) Juiz do Trabalho, titular da 3ª. Vara de Jundiaí e professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.
[1]. http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=564, acesso em 15/10/10.

O voto de qualidade e o impasse no STF


Num dos julgamentos que mais atraíram a atenção da sociedade nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal (STF) ficou preso num impasse. Cinco ministros se pronunciaram pela validade da aplicação da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010 e cinco foram contra. Como a 11ª vaga da Corte está aberta, a sessão foi suspensa sem que nenhuma decisão fosse proclamada.
Uma questão que nos chamou a atenção foi o fato de o presidente da Corte não ter se valido do voto de qualidade para concluir o julgamento. Mesmo existindo outros dispositivos no regimento do STF que solucionam situações de empate, nenhum se aplicava à hipótese, já que não se debatia a constitucionalidade material da norma, mas a mera possibilidade de a Lei da Ficha Limpa incidir, ou não, nas eleições de 2010.
Apesar de num primeiro momento soar estranha, a previsão de votos de qualidade, tanto no Brasil como no exterior, é mais comum do que parece, não existindo motivo para perplexidade. Em primeiro lugar, é falsa a premissa de que o uso do mecanismo implica duplo voto. Tecnicamente, há apenas uma regra de solução de empate, a qual determina que prevalece a tese sustentada pela corrente da qual faz parte o presidente.
Em âmbito externo, a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos são exemplos de colegiados que adotam o mecanismo. Como o Brasil é signatário dos tratados que estabeleceram ambas as Cortes, a conclusão de que o uso do voto de qualidade pelo presidente do Supremo seria inconstitucional levaria à nulidade das normas contidas nos referidos tratados. De forma análoga, na Itália, salvo em matéria criminal, a Corte Constitucional se vale do critério. No país, pode-se citar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e os conselhos de contribuintes.
Contudo, nem sempre se recorre ao voto de qualidade para se solucionar votações empatadas. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, por tradição, a decisão do tribunal inferior fica valendo para o caso concreto sem, contudo, se firmar como precedente. Trata-se de norma que não decorre da regra one person, one vote, a qual foi adotada em decisões do tribunal que asseguraram a divisão dos distritos legislativos com um número aproximado de eleitores. Apenas foi o critério definido e seguido ao longo dos anos. Basta dizer que os EUA são signatários dos tratados que criaram as Cortes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), que adotam o mecanismo.
O impasse verificado na apreciação da validade da Lei da Ficha Limpa, ademais, coroa uma lista de episódios em que o STF teve que suspender julgamentos por falta de quorum. Isso ocorreu, por exemplo, em  3/8/09, numa das sessões em que se debateu a recepção da lei que instituiu o monopólio dos serviços postais. O ministro Menezes Direito declarou-se impedido. Verificado o empate, o julgamento foi suspenso. O impasse apenas foi solucionado com o reajuste do voto do ministro Carlos Britto, que aderiu à tese da corrente que entendeu válido o monopólio da ECT para cartas.
No mês seguinte, num caso que tratava da imputação do crime de apropriação indébita a um parlamentar, o tribunal, mais uma vez, se dividiu. Uma corrente concluiu pela atipicidade da conduta e, logo, pela absolvição do réu. A outra reconheceu o crime, mas entendeu que estava prescrito. Em razão do falecimento do ministro Direito, a Corte suspendeu o julgamento e apenas o retomou após a posse do ministro Dias Toffoli.
Desse modo, foi justamente a inexistência de uma regra que permitisse concluir o julgamento de determinadas questões com votação empatada que levou o STF, em dezembro passado, a incorporar o voto de qualidade ao regimento. Ademais, a opção pela regra decorreu da falta de alternativa satisfatória. A solução adotada pela Corte Suprema dos EUA não solucionaria todas as situações de impasse, já que nos processos de controle concentrado, em geral, não existem decisões de cortes inferiores. Além disso, nem todos os incidentes que devem ser resolvidos envolvem questões constitucionais, as quais demandam a maioria absoluta dos votos.
É prudente e necessário que os membros do STF defendam com afinco as suas posições. Porém, estão todos submetidos ao império da lei, o que, em nome da estabilidade e da segurança jurídica, impõe que cumpram as regras de julgamento do tribunal, ainda que isso acarrete a tomada de decisões impopulares. Não há espaço para discricionariedade nesse ponto. É o que os americanos denominam de responsabilidade institucional. É que, como uma vez afirmou o ministro Sepúlveda Pertence, a República impõe sacrifícios.
Flávio Jardim
Mestre em direito pela Universidade de Boston e advogado inscrito na OAB-DF e da Appellate Division (3rd Department) do Estado de Nova York (EUA)
Paulo Paiva
Professor assistente de direito constitucional do Instituto de Direito Público (IDP)